"Era mais fácil jurarmos amor "até que a morte nos separe" quando a morte era uma ceifeira jovem e eficiente. Basta passearmo-nos pelos cemitérios de antanho, povoados de anjos de pedra e jazigos construídos com vagar, para percebermos como era romântico o amor eterno: as belas noivas subiam frequentemente ao céu no alvor da juventude por mor de um parto acidentado; quanto aos noivos, se não fosse uma batalha, seria uma qualquer peste contagiosa, mais ou menos pecaminosa. Ninguém subia ao altar com a ideia de passar cinquenta anos ao lado do ente querido, nem imaginar qual dos dois mostraria primeiro sinais da aterosclerose. Era bom amar para sempre nos tempos de Guerra e Paz de Tolstoi, quando as pessoas se finavam na glória dos seus cinquenta anos, mais coisa menos coisa. Até porque ainda não se inventara essa pérfida globalização, que em poucas horas nos leva de um continente ao outro, fazendo-nos viver num contínuo desfile de caras e corpos, se não novinhos em folha, pelo menos novos ao nosso olhar. Não havia, por assim dizer, a concorrência desenfreada de tipos humanos que hoje há. Imaginemos o Simão Botelho dos transmontanos idos do Amor de Perdição, já não digo em Nova Iorque ou no Rio de Janeiro, mas na Lisboa ou mesmo na Viseu de 2008 - e pensemos quanto tempo ele levaria a esquecer os reflexos da luz do sol no cabelo de Teresa à janela. Amar uma só pessoa durante quatro, dez ou vinte anos, hoje, equivale à fidelidade de uma vida inteira dessas lentas, de antigamente. Acresce que a fidelidade aos mortos é mais leve - feita de algodão de metafísica. Os mortos não deixam a roupa espalhada pelo chão nem cabelos na banheira, não ressonam nem se zangam connosco quando nos atrasamos, não nos pedem ajuda para preencher a folha dos impostos nem se esquecem do nosso aniversário. Sabem dizer-nos exactamente aquilo que queremos ouvir, mesmo que não tenham chegado a dizê-lo em vida. São perfeitos. Os mortos são os únicos seres com os quais é possível mantermos um casamento contra a vontade deles.
Assim, o que me espanta, não é a proposta de lei que visa acabar com o divórcio litigioso: o que me espanta, é que até hoje, as pessoas possam permanecer casadas durante anos (três actualmente) com um outro ser humano que já não quer estar casado com elas. Que alguém queira viver assim, não me surpreende: há gostos para tudo, e oiço dizer que há quem experimente um prazer requintado em marterizar outrém. o problema é que os divórcios muito litigiosos resultam normalmente de casamentos em que existem filhos - e o mais elementar bom senso recomendaria que se poupasse às crianças o espectáculo pornográfico de atribuição de culpas. Alegam os opositores desta proposta que aceitar a dissolução "só" por vontade de um dos conjuges é cometer uma injustiça contra o outro, o "santo", "o que não tem culpa".
Quando morre o desejo, quando o amor se esboroa - de quem é a culpa? Quem deixou que a chama se apagasse? Provavelmente um e outro, sem darem por isso - ou apenas o vento, o excesso de realidade, as deambulações de cada um dentro da sua própria vida. O "culpado" é, pressupõe-se, o "infiel". A Humanidade anda desde os alvores da História a dividir o mundo entre "fiéis" e "infiéis" (a um Deus, a um Senhor, a outro ser humano) e os resultados não têm sido propriamente brilhantes - não será tempo de mudarmos de modelo? Acresce que a infidelidade concreta, seja ela qual for, é sempre uma consequência, nunca uma causa - Se A que amava B agora ama C, é porque havia dentro dele (ou dela) um espaço de amor (ou desejo, ou cumplicidade) por preencher. Os afectos não se comandam - é aliás por isso que a inteligência tem melhor imprensa do que os sentimentos, não nos dá jeito nenhum percebermos que, tão doutos que somos, tão superiores a cães, lagartos e leões, não temos controlo algum sobre os dados fundamentais das nossas vidas: o nascimento, o amor, a morte. Quantas vezes desejámos amar quem não amamos, e não amar quem, contra todas as razões, amamos? Quantas vezes soçobramos ao amor que nos faz mal depois de anos de esforço sincero para querer o amor que nos faz bem?
Pode também acontecer separarmo-nos de alguém e virmos a descobrir mais tarde, que afinal, aquela era a pessoa com quem queríamos partilhar a vida. Ainda assim é mais fácil que isso aconteça depois de um divórcio rápido e tranquilo do que depois do tenebrosos desgaste de um divórcio litigioso. As pessoas enganam-se - a si mesmas, antes de mais. Sabermos que nos enganámos faz-nos sofrer - sim, o "culpado" também sofre. Em nome de quê havemos de arrastar esse sofrimento mutuo anos a fio - destruindo a estabilidade emocional das crianças ou das famílias e amigos em redor do casal?
O amor é um animal felino, mutante, não resiste a cativeiros forçados. Podemos ter a sorte de amar e ser amados "até que a morte nos separe" - mas a verdade é que só podemos prometer amarmo-nos até ao dia da morte do amor, esse ser misterioso, independente e livre."
Inês Pedrosa - In Única
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