Caixa dos fios

1.9.08

Coitadinhos

Toda a minha vida me considerei desenrascada e poucas foram as situações, tirando as de carácter financeiro em que não me safei. A minha mãe criou-me na óptica do "quem quer bolotas trepa", e eu, graças a Deus, sempre fui muito boa a trepar, diga-se em abono da verdade.
Lembro-me de ser teenager, na altura usavam-se os célebres tijolos, para quem não se lembra, eram uns rádios com leitor de cassetes que em cada ponta tinham uma coluna. Pois um belo dia o meu tijolo pifou e deixou de ler cassetes, mandar arranjar era demasiado caro, mas eu rapidamente arranjei uma alternativa; desmontei-o. O problema estava numa correia que saiu do encaixe, ao voltar a montar sobraram-me peças (espanto!) mas a verdade é que funcionava e sem querer acabei com um ruído parvo que ficava nas gravações. Moral da história, os senhores da Sanyo tinham mesmo colocado peças a mais no meu tijolo.
Alguns anos mais tarde decidi que queria uma mota, sonhava com uma Yamaha LC 50, andei a juntar dinheiro, vendi as minha férias ao patrão e consegui comprar a bendita mota.
Quando chegou a altura de alugar uma casa, não tinha mais do que o suficiente para pagar umas águas furtadas em mau estado em sapadores. A casa era irreal, a cozinha era a entrada de casa e era minúscula, o wc ficava na varanda e não tinha porta. Empatei todo o dinheiro que tinha nas rendas adiantadas ao senhorio e nas seguintes até ter o apoio do IGAPHE. Tomei banho meses a fio com água fria (durante o inverno), lembro-me de sair do duche e ir a correr para debaixo do edredão para me vestir. Não apanhei nenhuma pneumonia e resisti.
A minha vida foi melhorando e decidi mudar de casa, mudei para duas ruas abaixo. Casa normal, não havia partes esconsas e o wc além de ser dentro de casa até tinha banheira.
Pelo meio passei por situações problemas no trabalho, de desemprego, desavenças com o namorado, sonhos que nunca mais concretizava e muitos meses em que o dinheiro não me chegava sequer para as despesas. Amigos, tinha poucos mas bons e estava separada da minha família há já algum tempo, as mãos disponíveis ajudavam no que podiam, mas havia muito a fazer. Foram anos duros e difíceis.
Pouco a pouco as coisas foram-se compondo, mas nem por isso alguma vez senti que me facilitassem a vida de alguma forma. Todos os meus fardos carreguei-os sozinha e não foram poucas as vezes em que tive cargas maiores do que as forças. Nestas alturas em vez de ser aliviada colocaram-me foi mais peso em cima. Sempre todos muito exigentes. Ela é forte, aguenta!
Habituada a contar apenas comigo e a dar sempre o meu melhor nunca esperei ajudas, nunca esperei que alguém fizesse por mim. Tenho há muito tempo como máxima: "se é para fazer, faço bem feito, porque se for uma estucha só a faço uma vez, se não, faço bem feito o que gosto". Isto é tão válido no campo pessoal como no profissional. Gosto de ser desenrascada, gosto de aprender, gosto de me aplicar. Se tropeço, levanto-me, sacudo as pernas e sigo em frente.
Já passei por períodos de grande carga de trabalho e de assuntos pessoais por resolver. Organizei todo o meu casamento até ao mais ínfimo pormenor. Igreja, copo-d’água, burocracias, convites, lista de casamento, missais, ementas, lembranças, fotógrafo, flores, música, vestido, lua-de-mel e até a roupa do noivo, tudo tratado por mim.
Fiz a primeira mudança de casa a dois, o futuro noivo teve de vir a casa da mãe buscar umas coisas, ficou preso na Vasco da Gama e quando chegou já estava tudo nos seus devidos lugares. Nem parecia que tinha tudo entrado em casa naquele mesmo dia.
Grávida de quase 9 meses do Infante mais velho e cansada de esperar pela ajuda do pai, deitei mãos à obra e a pouco e pouco pintei os móveis do quarto, continuei à espera do dia em que o pai ia ajudar a pintar as paredes, até ao dia em que as pintei eu. Ainda me lembro de estar sentada na caixa das ferramentas com uma barriga maior do que eu a pintar o verde que ia ficar abaixo da barra de papel com os ursos.
Quando o T nasceu, saia todos os dias sempre com ele atrelado a mim. Nunca o deixei com ninguém, não por medo, ou por não me conseguir separar dele, mas porque estava habituada a contar só comigo. Era bebé no ovo para cima e para baixo, põe no carro, tira do carro. Pormenores que só quem já andou com bebés atrás entende a dimensão da logística.
Quando engravidei do A. decidimos que tínhamos de morar mais perto do trabalho de ambos e da escola do T. Eu fazia 120 km por dia para vir trabalhar, as portagens da crel tinham passado a ser pagas, a gasolina tinha começado a aumentar estupidamente e o orçamento familiar ressentia-se. O cansaço de filas e acidentes na ponte, também.
Como em quase tudo na minha vida a coisa complicou-se quando quase um ano depois de pôr a casa à venda aparece um casal que a compra... a menos de um mês do Natal e eu com um bebé de 3 meses colado a mim e um filho com 4 anos. Passei o Natal e a passagem de ano com tudo no sítio. Os meus primeiros dias do ano foram passados a encaixotar as coisas entre mudas de fralda e mamadas. Para ajudar à festa, nós tínhamos tido vários falsos alarmes relativamente à venda da casa e decidimos que só procurávamos outra quando a casa à venda tivesse a escritura marcada. Logo, além dos caixotes e de um bebé com quase 4 meses eu ainda tinha de fazer 120 km quase todos os dias para ver casas, muitas casas. Foi mais uma saga de bebé no ovo para cima e para baixo. Muitas foram as vezes em fui a correr à escola da minha mãe para tirar leite e dar ao bebé entre duas visitas a casas.
No dia que encontrei a casa que queria e que podíamos pagar, telefonei ao pai, a resposta ao meu pedido para vir ver a casa foi: -mas tem de ser hoje? Acabou por vir e comprámos a casa. A seguir à compra da casa vieram as obras. Escolher materiais, pensar nas tomadas, comprar electrodomésticos, supervisionar a obra, pagar ao empreiteiro, discutir com o electricista, tudo ficou a meu cargo que continuava com o bebé no ovo atrelado a mim. Desta vez o pai pintou o quarto comigo.
Até há uns meses atrás eu era uma mulher casada, mãe de dois filhos, trabalho das 9h30 às 19h, muitos dos dias era eu que ia buscar os miúdos à escola, aos fins de semana de manhã vinha com os dois para a rua para o pai dormir um bocadinho mais, mantive sempre a minha casa arrumada e organizada. Das poucas vezes que saía, vinha a casa preparar jantares e ajudar nos banhos.
Neste momento reorganizei a minha vida, vivo sozinha com os meus dois filhos, que vou buscar à escola, preparo jantares, dou banhos, preparo mochilas e mantenho tudo organizado como sempre fiz. Continuo como sempre a ser eu a pôr gasolina no carro, a ver a pressão dos pneus e a verificar o nível do óleo.
Estes episódios da minha vida são apenas uma pequena parte de tantos porque passei. Não foram os mais dolorosos, os mais trabalhosos nem os mais penosos, foram escolhidos aleatoriamente dum saco onde estão muitos mais guardados.
Nunca quis que tivessem pena de mim. Lutei muito para ser independente e é assim que gosto de ser e que me vejam. Sou pacífica e não gosto da expressão "mulher de armas". Dou o meu melhor em tudo o que me proponho e poucas são as vezes em que me permito falhar. Mas como em tudo na vida há alturas em que paramos para pensar e neste momento pergunto-me se não teria valido a pena esperar que alguém fizesse por mim. Olho à minha volta e vejo o mundo cheio de coitadinhos. Pessoas que se encostam, que esperam que alguém faça, que alguém diga, alguém se mexa por elas. Tenho a minha consciência tranquila, mas também tenho o corpo cansado de andar sempre para a frente com um mundo de tarefas e papéis para desempenhar. Não é valor que busco. Eu sei muito bem qual é o meu e a quem o devo. É alívio! É por uma vez na vida ter alguém que trate das coisas por mim.
A sociedade tem tendência a beneficiar infractores. Não se dão determinadas tarefas a pessoas porque são lentas, incapazes, trapalhonas e irresponsáveis. Sobrecarregam-se as que cumprem. Perdoa-se a que não faz nada no trabalho a não ser gastar recursos da empresa e minar o relacionamento entre colegas porque está a atravessar um período difícil. Os maridos mimam as mulheres que andam sempre debaixo da alçada deles, porque eles assim sentem-se protectores.
E eu estou cansada. Cansada de ser "tudo eu, tudo eu". Eu tenho sempre que ter tempo para tudo e todos, a mim não me desculpam nada e ainda exigem porque eu aguento.
E eu, estou cansada e farta de coitadinhos.