Caixa dos fios

22.8.10

somos todos descartáveis


Vivemos numa sociedade descartável. Todos os sabemos. Já não se deixa depósito para depois irmos devolver as garrafas vazias e recebermos de volta o depósito. As garrafas de vidro do leite foram substituídas pelas embalagens de papelão, quando vazias desdobram-se e depositam-se de vez no ecoponto amarelo. Os copos de vidro do iogurte são agora de plástico e quando vazios acabam no mesmo sítio dos pacotes de leite. As garrafas de cerveja, que continuam de vidro, já não se entregam no sítio onde as compramos e deixámos o depósito, existe um ecoponto verde onde as deixar. E os antiquados garrafões de água, em vidro com uma capa de plástico, também foram substituídos por mais plástico e o ecoponto amarelo está lá no mesmo sítio à espera deles quando vazios. Claro que tudo isto é assim se houver um ecoponto por perto e, mesmo havendo, se existir alguma consciência ecológica por parte de quem comprou e não deixou depósito, caso contrário vai tudo parar ao lixo e não se fala mais nisso.
Se virmos bem, o que passámos a fazer com as embalagens, é exactamente o que se passa em tudo o resto. Antigamente comprava-se um frigorífico e esperava-se que durasse uma vida. Quando avariava chamava-se um técnico que o arranjava. A verdade é que actualmente a maior parte das avarias não compensam o arranjo. Vivemos numa sociedade de consumo e é mais fácil [e barato] substituir por um novo. As máquinas do lar foram feitas para durar meia dúzia de anos, os carros para serem trocados de 4 em 4 anos, a partir de determinada altura é só chatices. Inundações em casa porque não usámos calgon ou calgonit e as máquinas são subitamente invadidas pelo calcário ou a chatice da electrónica lixou um módulo que sai quase mais caro que a máquina, os carros, como toda a gente sabe, quando começam a dar problemas habituam-se a sentir as mãos do mecânico e depois não querem outra coisa. Os nossos sapatos deixaram de ir ao sapateiro, quando acabam as solas ou as capas deitam-se fora [ou dão-se aos pobres] e aí está uma boa desculpa para comprar-mos o modelito que vimos na montra daquela sapataria. Nas calças dos miúdos já não são cozidas joelheiras, os saldos da Zara tem umas em conta que são quase o que leva a costureira a cozer umas. O telemóvel nem precisa de avariar, basta sair um modelo mais bonito, mais actual, que tenha mais uma função qualquer [mesmo que nunca tenhamos precisado dela nem a venhamos a utilizar] e é substituído na primeira passagem pela loja. Se um empregado muito válido para a empresa quer sair porque acha que está a ser mal pago ou tem poucas regalias é deixá-lo sair e contratar um recém licenciado por um quarto do ordenado e está feita a coisa. Já ninguém lava fraldas de pano, é mais fácil ir ao supermercado comprar um pacote das descartáveis. Os guardanapos de pano caíram em desuso e os de papel agora são reis à mesa. O cão que já não corre e arrasta-se deixa-se num sítio qualquer e o gato que já não acerta no caixote para fazer as suas necessidades fica a fazer companhia ao cão, a caminho de casa passa-se na loja de animais e compra-se um hamster ou uma tartaruga que dão menos trabalho e a criança nem vai dar por falta dos animais, afinal também já não lhes ligava muito. O avô e a avó são enfiados num lar quando já não tem energia para tomar conta dos netos e precisarem de alguém que tome conta deles. E, já nem os móveis são comprados para toda a vida, afinal existe a Ikea e mais vale ir comprar uma mesa nova e aproveita-se para mudar toda a decoração da casa e deitar fora aqueles presentes de casamento que já ninguém usa.
Também nós, pessoas passámos a ser descartáveis, mas desengane-se quem pensar que qualquer um de nós é descartável apenas para a entidade patronal. Somos de um modo geral descartáveis. É a lei do lucro. Procura-se lucrar a todo o custo. Não interessa quem fica por baixo, desde que não seja o próprio. Deixou de se dar verdadeiro valor às pessoas, aos outros. Não se valorizam sentimentos. Tudo é um dado adquirido como se todos fossemos crianças mimadas [no mau sentido, entenda-se]. Déspotas, que à mínima contrariedade nos voltamos para quem com facilidade está do nosso lado, para quem nos dá mais naquele preciso momento. Já não temos paciência para aturar os problemas dos outros, ouvimos-los num momento de tédio e entretemos-nos até termos uma nova distracção que nos apraz mais. A lealdade é um sentimento em vias de extinção, tal como os trocos que um dia deixámos de usar como depósito das embalagens.