Quando era miúda era a única criança da família chegada, primos havia muitos, afastados em km e em grau de parentesco, sempre quis ter um irmão, não aconteceu. Cresci numa família grande e no meio dos grandes, salvavam-me os meus vizinhos, a família do Sr. Engenheiro do rés-do-chão. A Dona Fernanda e o Sr. Engenheiro [não me lembro do nome do Sr.] eram pais de cinco, três raparigas, a Rita, a Catarina e a Cristina e dois rapazes, o Chico e o Zé. Elas, todas mais velhas do que eu, o Chico um ano mais velho e o Zé que tinha menos três ou quatro anos que eu.
Esta foi a minha família adoptiva durante a minha infância. Mas se foi adoptiva, também foi o meu ideal de família durante muito tempo. Para alguém que crescia numa família disfuncional e com falta de seres do mesmo tamanho, hoje não me espanta nada este ideal criado. A Dona Fernanda não trabalhava, ao contrário da minha mãe, estava sempre por perto, fazía-nos lanches de mesa posta e tricotava camisolas na esplanada do parque Eduardo VII enquanto nós, eu o Chico e o Zé esmurravámos joelhos e cotovelos na bicicleta, no skate e no carrinho de esferas em corridas até ao Marquês de Pombal. Depois do parque ajudavá-nos com os trabalhos de casa para podermos ir para o quintal jogar à bola. A casa da Dona Fernanda cheirava sempre a bolo ou a estufado e, se cheirava bem sabia ainda melhor. Nas refeições no rés-do-chão éramos muitos à mesa. Quando a Dona Fernanda ia às compras iam também os três estarolas para ajudar. Costumávamos ir ao Pão de Açucar em Alcântara, julgo que devia ser o maior supermecado de Lisboa na altura. À excepção do Zé cada um de nós levava um carrinho. Sim, as compras do rés-do-chão eram feitas em três carrinhos apinhados que quando chegávamos a casa ajudávamos a arrumar na despensa em tudo igual à do 2º direito à excepção da quantidade de bens adquiridos.
Aquela casa vivia em permanente corropio, eram as amigas da Catarina e da Cristina, as colegas de curso da Rita, as amigas de esplanada da Dona Fernanda, a empregada e eu. Ah... tinham um Cocker Spagniel cor de caramelo. Casa cheia, portanto.
E eu? Eu cresci em dois mundos completamente diferentes um do outro. Entre o sossego que cortava no 2º Dtº e a alegria e discussões de uma família numerosa.
Nas minhas memórias do Natal também figuram todos estes personagens de história real. A casa era toda enfeitada, o pinheiro vinha sempre num vaso em vez de cortado e chegava ao tecto [e se os tectos eram altos] que nós entulhavamos de enfeites e atirávamos fitas como se fossem serpentinas. Só lá passei um Natal porque a família do Sr. Engenheiro tinha por tradição ir passá-la a Vila Nova de Mil-Fontes. Era um dia triste o dia em que da janela do 2ºDtº os via a carregar os carros com malas e sacos de presentes para os só voltar a ver no Ano Novo. Mas o Natal que vivi naquela casa foi a realização do Natal do meu imaginário. A casa estava cheia, a mesa transbordava de iguarias da época, havia alegria, gargalhadas e presentes abertos ou por abrir misturados com papel de embrulho rasgado. Os presentes eram só os dos adultos, porque nós crianças só abríamos os presentes no dia 25 de manhã e eu, a correr escada a baixo de pijama porque era Natal e tinha de ir abrir os meus presentes. Eu e a Dona Fernanda acordámos os dois estarolas que faltavam e fomos para a sala repetir a cena dos crescidos na noite anterior com o cheiro de torradas e bolo à volta.
Este foi sempre, para mim o cenário idílico de Natal, não foi imaginado, foi vivido e todos os Natais me lembro do Natal da família do Sr. Engenheiro, do quão quente e colorido era.
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