Não tenho pai, nunca tive. Não, não morreu, não que eu saiba. Nunca tive, nunca o conheci, não como tal. A minha infância foi pautada por situações chatas e difíceis de lidar numa altura em que era politicamente incorrecto e socialmente condenável não se ter um pai. Lembro-me das perguntas dos colegas da escola: - Mas não tens pai, como? Lembro-me da falta de bom senso dos professores, que me faziam perguntas indiscretas quando viam o campo da filiação paterna por preencher: - A Ana tem de preencher o nome do pai. - Ao que a Ana respondia que não sabia e que logo de seguida levava com duas perguntas de rajada: - Não sabe? Então não sabe o nome do seu pai? - Como é óbvio, a partir daqui entrava-se num chorrilho de perguntas resposta no mínimo incómodas para se ter à frente dos colegas. Enfim...
A verdade é que sempre quis ter um pai. Muitas vezes sonhei em ser a menina do papá. Nunca fui.
Desde que me lembro de ser gente, que tive duas figuras a quem atribuia o ónus de receber a bendita prenda do dia do pai, o meu avô e o meu tio. O meu tio era para mim a imagem perfeita de pai que gostava de ter tido. Sempre rodeado de amigos, bem disposto, levava-me com ele para todo o lado, trouxe-me dois ursos em viagens que fez à Polónia, escreveu-me postais quando esteve em Angola [num deles dava-me os parabéns por eu ter sido eleita chefe de turma, coisa importantíssima naquela idade]. O meu avô era a imagem do respeito, não me lembro de alguma vez me ter levantado a voz, não me lembro de me ter dado um único açoite, enfiava-se no escritório que tinha lá em casa e eu lá ia remexer nos selos e nos papéis dele. Lembro-me dos passeios de carro, lembro-me que não podia conduzir de noite porque adormecia e lembro-me que exactamente por esse motivo, um dia à noite senti a parede pintada de tinta de areia do corredor lá de casa me arranhar as costas com a força que fiz encostada a ela enquanto me baixava ao vê-lo entrar em casa coberto de sangue e vidros espetados na cara. Jamais esquecerei as partidas de bisca do nove que fazíamos na cama dele aos fins de semana de manhã, hoje sei que ele fazia exactamente o mesmo que eu, tudo para perder, eu porque tinha pena dele devido ao cancro que o consumia, ele provavelmente porque se queria ver livre de mim para sofrer à vontade. Ainda havia o R., o R. era o namorado da minha mãe, vivia no Porto e durante muitos anos sonhei que ele e a minha mãe iriam ficar juntos. Lembro-me da casa do R., onde vivia com os pais, lembro-me da empregada dele que me preparava leite com nesquick, lembro-me do cão que eles tinham. O R. encarnou no meu imaginário durante muito tempo aquele papel que tanta falta fazia e que ele tão bem representou tantas vezes. Mas o R. tinha ainda outra particularidade, que apenas descobri apenas alguns atrás, eu fui a única criança que entrou na vida dele. Filho único, casou várias vezes e nunca teve filhos por opção. É pena, pela minha experiência acho que ele teria sido um excelente pai [pelo menos depois de passada a fase das fraldas].
O R. está hoje mais sozinho do que ontem, eu estou triste pela dor dele, hoje sinto-me como se fosse filha dele e lamento mesmo muito não lhe poder dar a mão.
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