Caixa dos fios

22.3.10

[faz-me falta]

Não me consigo lembrar do seu cheiro, nem do som da sua voz, lembro-me das mãos, grandes, de dedos longos, já pele e osso de veias salientes. Lembro-me da sua ainda farta cabeleira branca, da barba de três dias grisalha, muito grisalha, das bochechas muito encovadas, do olhar sofredor. Lembro-me do frasco de morfina que a minha mãe e a minha avó guardaram longe do meu alcance [na última prateleira da despensa, o meu esconderijo favorito]. Lembro-me de atravessar 11 metros de corredor com o seu metro e oitenta de corpo morto apoiado em mim [como pesava], lembro-me de o ajudar a levantar do sofá, colocava uma perna no meio das dele, com cuidado colocava as mãos por baixo dos seus braços e fazia força para o ajudar a levantar, eu tinha 10 anos.
Lembro-me dos dias que passou na cama, de já nem se poder levantar, de eu já não poder jogar à bisca do nove porque a falta de forças não lhe permitia sequer segurar nas cartas. Lembro-me de o ver definhar dentro de um corpo que não era o dele [tão alto, tão vigoroso, tão forte, tão Senhor], transformado num resto de alguém pelo maldito cancro que o consumiu.
Lembro-me da impotência que sempre senti ao olhar para ele, de fazer força para não ter pena, ele não teria gostado de saber que eu tinha pena, mas tinha, não dele, mas de mim, por o ver assim e não poder fazer nada.
Lembro-me da manhã em que morreu, lembro-me exactamente de cada segundo, de cada palavra que me disseram, de cada palavra que disse. Lembro-me que chorei, chorei muito, lembro-me de estar agarrada a ele, abraçada a ele, lembro-me que chorei por ele e chorei por mim.
Só não me lembro do seu cheiro, nem da sua voz. E, às vezes faz-me falta conseguir recordar a sua voz e o seu cheiro.